Qual é a diferença entre uma estrada e uma rua?

Podem parecer a mesma coisa mas não são, saber distinguir ambas é importante.
Uma rua e uma estrada são coisas diferentes, e se não consegue distinguir saiba que provavelmente a culpa não é sua. Quem as projeta e constrói também não sabe, então o que acaba por ser construído é uma mistela desordenada que torna difícil saber o que é o quê. Este artigo explica em detalhe a diferença entre ambas, com esquemas e exemplos práticos, para que seja fácil qualquer um, independentemente do background, de ficar a saber diferenciar.
O que é uma Estrada?
Uma estrada é uma conexão de alta velocidade entre locais, é feita e pensada para permitir a circulação do maior número de veículos à maior velocidade possível. Em consequência disso, existe um conjunto de características que nos permitem identificar uma estrada com relativa facilidade. As vias de circulação são mais largas para facilitar a condução, o seu traçado é mais recto, e quando são necessárias curvas, estas são pouco acentuadas. Os sinais de trânsito são maiores para poderem ser avistados com facilidade a longas distâncias e a maiores velocidades, e os cruzamentos são espaçados e poucos. De uma forma generalizada, uma estrada é um local pouco complexo, porque o principal objetivo é manter os veículos a circular a uma velocidade relativamente alta, pelo maior tempo possível, de forma segura e confortável, para minimizar tempos de viagem sem comprometer muito a segurança.
O pináculo de uma estrada é a Auto Estrada, pois leva cada um destes pontos muito a sério, e refina cada um deles ao máximo para permitir as velocidades geralmente bem mais elevadas, que são permitidas em comparação com outras vias equiparadas, com relativa segurança. Mas não só auto estradas são estradas, as simples e comuns estradas nacionais e até muitas estradas municipais podem e devem encaixar nesta categoria. A partir do momento em que uma determinada via tem como principal finalidade a utilização como meio de passagem, e não como um ponto de partida ou um destino de viagens, esta deve ser considerada uma estrada.
O que é uma Rua?
Por outro lado uma rua é um ambiente complexo, é onde pessoas existem, onde vivem, trabalham, estudam, consomem bens, serviços e convivem. Os edifícios estão colados ao passeio, é possível ver o que existe dentro dos estabelecimentos através de montras e rapidamente se entra num estabelecimento comercial ou uma habitação. Existem muitos cruzamentos, entradas e saídas de habitações, estabelecimentos, estacionamento de rua e locais para carga e descarga.
Uma rua é um local extremamente eficiente a gerar riqueza para o espaço que ocupa, por natureza de toda atividade económica que ali se desenvolve para os empresários e trabalhadores, mas também para o estado pelos impostos que são cobrados. É um local altamente produtivo para a sociedade, não só a nível económico, mas também a nível social e cultural.
Por essas razões, uma rua não é compatível nem com elevados volumes de tráfego nem com altas velocidades. Tudo deve estar a uma escala humana, velocidades de circulação baixas, menos vias de trânsito e mais estreitas para permitir peões atravessarem com relativa facilidade e rapidez. O principal objetivo de uma rua não é mover o maior número de veículos possível, o mais rápido possível. O objetivo de uma rua é oferecer acessibilidade às habitações e negócios. Idealmente todo o tráfego motorizado numa rua está apenas a acabar de iniciar uma viagem, ou em vias de chegar ao destino, e ninguém está apenas de passagem. Para isso existem as estradas.
O que é uma Rustrada?
Afinal não existem apenas dois tipos, idealmente deveriam ser só dois, mas existe uma terceira e indesejada categoria. É o que acontece quando não se sabe distinguir as duas e tenta-se usar uma solução faz tudo.
Em 2011 o engenheiro civil e urbanista Charles Marohn cunhou a palavra Stroad, que é uma mistura das palavras Street e Road em inglês, para descrever uma via que é uma mistura de rua com estrada. Por isso, permitam-me cunhar o termo em Português se ainda não foi feito, a melhor tradução para o português seria Rustrada.
Apesar de este ser um problema de proporções épicas e quase sem comparação na América do Norte, tanto nos Estados Unidos como Canadá, as ditas Stroads também existem por cá. Só não têm habitualmente tantas vias de trânsito por sentido e são mais pequenas em tamanho, mas uma mera estrada nacional que de repente passa pelo meio de uma cidade ou vila pode ser considerada uma rustrada, a partir do momento que tenta resolver dois problemas numa só solução.
Assim sendo, uma Rustrada é a tradução, meio que literal, do termo Stroad, que é o nome dado a uma via rodoviária que é uma mistura de rua com estrada, e ao ser assim, não serve nem de estrada nem de rua, e deixa ambos os tipos de utilizadores mal servidos.
Uma Rustrada falha em ser uma boa estrada porque para quem está só de passagem, apesar desejar deslocar-se o mais rápido possível, não consegue por causa de toda complexidade derivada de pessoas a atravessar a rua, outros veículos a procurar estacionamento, a realizar a manobra, a entrar e a sair de todos os cruzamentos e acessos a casas e negócios. O elevado número de pontos de conflito, para além de abrandar o tráfego, tornam esta via perigosa e aumenta a probabilidade de acidentes.
Depois falha também como uma rua porque para além de ser perigosa para todos fora de um carro, não são boas vias de acesso a casas e negócios, perde-se a escala humana que uma rua oferece. Tudo fica maior, com mais confusão e movimento, mais distante e mais difícil de aceder aos pontos de interesse. De repente é desagradável estar fora de um carro naquele local, por isso as pessoas deixam de estar, e isso significa menos negócio para os estabelecimentos comerciais, significa mais ruído para os moradores. É um terror estacionar, entrar ou sair de casa ou estabelecimentos comerciais, ninguém fica a ganhar numa Rustrada, a não ser a industria automóvel.
O problema
Esta incapacidade generalizada dos responsáveis pela construção da nossa rede rodoviária prejudica toda a gente, mesmo quem não acha que está a ser prejudicado.
Financeiro: Não fazer esta distinção afeta a sustentabilidade financeira dos Municípios, e do País como um todo, porque tanto autarquias como Infraestruturas de Portugal são obrigados a manter estradas cada vez maiores e mais caras, quando podiam evitar o alargamento de muitas e a construção de tantas outras, se fosse feita uma melhor gestão do que já existe. A ineficiência da rede como um todo obriga a que seja construido mais e maior, aumentando assim a fatura do que há para manter.
E não, o IUC que todos pagamos não chega, nem lá perto, ao contrário do que muitos fazem parecer. Só para se ter uma noção do quanto não chega, em 2021 o custo com as Parcerias Publico Privadas (PPP) rodoviárias, ficaram nos 1.2 mil milhões. A receita de IUC? Segundo a Autoridade Tributária, 743 milhões de euros, ou seja 0.7 mil milhões. Isto para manter o que está a funcionar, sem construir nada novo. Significa que toda a receita de IUC para o ano de 2021 não chega sequer para pagar as auto estradas, quanto mais todas as outras estradas nacionais, municipais e arruamentos residenciais por este país fora.
É mau mas vai piorar, em 2025 era para ser 2.8 mil milhões mas podem passar a ser 4.3, um derrape de mais de 50% à boleia das medidas populistas de acabar com portagens em muitos troços. Com estes valores o estado tem de ir buscar dinheiro a outro lado, é aqui que entra o ISV na compra de veículos novos, e ISP na compra de combustíveis fósseis. O que é uma posição extremamente precária de se estar, de um lado temos uma despesa fixa, a ser paga maioritariamente com uma receita variável, que depende da compra de carros novos e principalmente da utilização de combustíveis fosseis. Isto é o oposto de sustentabilidade financeira, isto é uma bomba relógio, ainda por cima com todos os incentivos que existem a comprar carros elétricos e usar transportes públicos.
Segurança: Para além da ruína financeira, não saber distinguir ambos os casos de uso leva a estradas mais perigosas no geral, para todos, dentro ou fora de um carro. A European Transport Safety Council fez recentemente um apanhado geral do quão mortíferas são as estradas europeias. Nessa publicação, Portugal aparece em destaque com um índice mortes na estrada elevadíssimo, mais alto que toda a Europa ocidental, igualando-se à Europa de leste, e muito, mas mesmo muito superior à nossa vizinha Espanha.

Social: Para além disso, esta forma de construir leva ainda a mais dependência do automóvel, e discrimina todos aqueles que não querem, ou não podem conduzir um. São mais pessoas que parece, e se juntássemos também as pessoas que conduzem mas não deviam, então a fatia do bolo cresce ainda mais. Muita gente conduz e preferia não conduzir, tivesse a escolha de não o fazer.
A Solução
A solução passa primeiro por interiorizar estes conceitos, e depois aplicar as boas práticas de design urbano em novas construções, sejam elas obras Municipais ou a cargo da Infraestruturas de Portugal (IP). Aproveitar as repavimentações inevitáveis que têm de ser feitas a cada 20 ou 30 anos, para alterar a configuração dessas Rustradas antiquadas. É preciso identificar bem quais são as vias que vão ficar como estradas e quais as que vão ficar como ruas. Repavimentar ou requalificar uma rustrada para ficar igual é não reconhecer o problema e adiar mais 20 ou 30 anos a solução.
A resposta não é tornar tudo ruas ou converter tudo em estradas. Ambas fazem falta, é uma utilização de ambas em locais estratégicos e de forma inteligente que vão permitir atingir uma maior eficiência e equilíbrio da rede como um todo. Nem todos os arruamentos têm de ter estacionamento de rua, ter estacionamento em todo o lado está a causar mais problemas do que a resolver. Não é um direito constitucional ter um lugar de estacionamento sempre livre à porta de onde queremos ir, nem a falta dele é justificação para infringir o código da estrada estacionando ilegalmente.
Uma estrada não pode ter estacionamento de rua, e idealmente não deveria ter nenhum acesso direto a habitações ou a estabelecimentos comerciais, mas não sendo possível, deve-se evitar ao máximo porque são pontos de conflito. Todos estes acessos devem ser feitos pelas traseiras ou por uma rua paralela e separada fisicamente da estrada. E definitivamente não se deve deixar novas construções serem erguidas com acessos diretos para a estrada como ainda hoje se faz.
Tirar estacionamento de uma rua, tornando-a numa estrada para melhor escoar tráfego é uma estratégia válida para melhorar os problemas de congestionamento de uma cidade. Melhor ainda se esse espaço extra for usado para criar vias segregadas para outros meios de transporte alternativos a conduzir, como por exemplo faixas dedicadas BUS ou ciclovias. Porque não existe solução para o trânsito automóvel a não ser alternativas viáveis a conduzir, e um autocarro preso no mesmo trânsito do automóvel privado não é uma alternativa viável. O trânsito numa cidade em crescimento vai continuar a piorar até que seja mais rápido e conveniente usar a alternativa. Ler mais sobre este fenómeno chamado de Downs Thomson Paradox.
As vezes nem é preciso remover lugares de estacionamento, mas sim redistribuí-lo. Em vez de ter estacionamento em todo o lado, remover em apenas uma rua chave para simplificar o trânsito, e depois converter as secundárias adjacentes menos importantes em ruas de sentido único, usando o espaço libertado para estacionamento perpendicular em vez de paralelo. Esta abordagem separa explicitamente os tipos de tráfego: Quem está de passagem não tem de se preocupar com quem está a estacionar, e quem está a estacionar não está preocupado ou ser pressionado por quem está só de passagem.
Em muitos locais esta abordagem pode até aumentar o número de lugares disponíveis, mas a mentalidade de deixar o carro literalmente à porta do destino, sob pena de andar 1 minuto a pé, está tão enraizada na cultura portuguesa, que não deixa que isto seja implementado sem que exista contestação brutal.
Tudo isto pode parecer demasiado utópico e uma tarefa impossível de implementar mas não é. Em Portugal já existem imensos locais com espaço suficiente para fazer esta distinção, é uma questão de saber identificar os locais candidatos, reconhecer que existe um problema, e ser criativo trabalhando com o que temos respeitando algumas regras.
E nos locais onde de facto não existe espaço, porque raio havemos nós de otimizar para o carro e não para as pessoas? Qual é o ganho, o valor económico que uma via extra ou um lugar de estacionamento extra trás versus uma esplanada ou um passeio onde de facto cabem todos? Será que nos esquecemos todos que os empregos estão nos estabelecimentos comerciais e não nas estradas, e quem lá gasta dinheiro são as pessoas e não os carros?
Ainda assim existem muitas rustradas com mais do que uma via de transito em cada sentido e depois estacionamento de rua, acessos a casas e negócios. Isto está errado, isto é misturar as duas coisas, é misturar tráfego de alta velocidade que está só de passagem com tráfego local que está a sair ou a entrar de casas e negócios.
Nestes casos uma simples reconfiguração da via é suficiente, não são necessárias obras profundas nem expropriar proprietários, o espaço existente já chega, só não está a ser usado de for a inteligente. Em vez de 2 vias juntas apenas é necessário introduzir uma barreira física e separar o tráfego local do tráfego de passagem, e adicionar uma conexão entre ambos espaçadamente. Ver esquema abaixo.

À esquerda temos um mau exemplo, uma via de comunicação que é ineficiente a mover pessoas e perigosa. Na direita temos a versão melhorada, sem ocupar mais espaço e sem remover lugares de estacionamento, que não só é mais eficiente como é mais segura para todos, dentro ou fora de um carro. As pessoas que estão só de passagem vão na estrada do meio sem complicações, e as pessoas a chegar ou a sair usam as vias de fora e mais juntas aos edifícios, que serão mais calmas e de velocidade mais reduzida. Nos cruzamentos com outras ruas e estradas faz-se a ligação entre as duas. É passar de pontos de conflito infinitos para 2 a cada 100 metros, uma diferença como da noite para o dia.
Para um exemplo concreto e real da solução apresentada no esquema ao lado esquerdo, a cidade de Viseu tem um exemplar perfeito. Uma rua dentro do perímetro urbano que tenta ser uma estrada ao mesmo tempo:

O único lugar onde esta rua precisava de uma via extra era imediatamente antes da rotunda, isto assim é uma abominação urbanística. A prova que as duas vias em cada sentido não são necessárias é que até existem carros estacionados em segunda fila a ocupar uma delas como estacionamento, ilegal claro.
Nem todas as rustradas têm de ter mais do que uma via por sentido, ou só uma faixa de rodagem, elas vêm em todos os jeitos e feitios. Uma simples estrada com apenas uma faixa de rodagem e uma via em cada sentido é considerada uma rustrada, se tiver estacionamento ou acesso a casas e estabelecimentos ao mesmo tempo que facilita a passagem de trânsito não local. Isto engloba praticamente todas as estradas nacionais que rasgam localidades a meio, de norte a sul de Portugal. Mesmo estradas com separador central, com duas faixas de rodagem e com uma ou mais vias por sentido, são rustradas também se tiverem igualmente estacionamento e acessos diretos e não através de uma via secundária e separada fisicamente.
Depois, para exemplificar o esquema do lado direito, Amesterdão está carregada de bons exemplos. Mas esta próxima fotografia foi escolhida porque demonstra bem a separação dos tipos de tráfego, não só é mais eficiente como é bem mais bonita e segura para todos. De notar que mesmo tendo todo este espaço disponível, apenas 1 via por sentido é dedicada a veículos que estão de passagem.

Por cá, e também em Viseu, existem quase bons exemplares destas boas práticas em uso, como é o caso da Nacional 2 no sul da cidade. Na próxima fotografia podemos claramente observar que existiu uma preocupação de não deixar as novas construções aceder diretamente à Estrada Nacional. O tráfego de passagem não se mistura com o local, e bem. Até passeios largos dos dois lados permitem a circulação a pé, de bicicletas ou outros meios de transporte leve ao mesmo tempo e em segurança:

Este exemplo só não é perfeito porque faltam algumas acessibilidades. Idealmente os veículos deviam poder trocar da estrada central para as ruas laterais em pelo menos 1 local e sem manobras à esquerda, uma vez que existem duas rotundas relativamente próximas que permitem fazer inversão de marcha para quem está num veículo motorizado. Também faz falta uma ou mais passagens para peões. Assim como estão, as pessoas dos dois lados estão isoladas umas das outras, pois a distância de mais de 500 metros a percorrer a pé até à próxima passadeira para atravessar a estrada, legalmente e em segurança, dificultam a deslocação e contribuem para o isolamento. Contudo são alterações extremamente fáceis e baratas de implementar, uma vez que a maior parte dos conceitos já estão bem aplicados.
Para Concluir
Espero que este artigo tenha sido informativo, e que ajude a identificar bem quem é quem na sua localidade. Exija ao poder local infraestrutura de primeiro mundo e não a mistela mal amanhada de terceiro mundo que são as rustradas portuguesas. Pode parecer uma não questão e algo insignificante, mas não é. É literalmente decidir como construir o ambiente físico que usamos todos os dias. Podemos aceitar o que temos, que é caro, ineficiente e perigoso como como já foi demonstrado. Ou podemos tentar educar-nos a nós próprios do que está mal, saber o que pode ser feito, e exigir ao poder local o que comprovadamente é melhor para todos em geral e não apenas para um grupo restrito de pessoas ou empresas. Nada do que está aqui é novo ou inovador, vários países seguem estes princípios, países que estão bem melhor que nós. Talvez seria boa ideia começar a replicar algumas destas coisas que estes países estão a fazer em vez de continuar a arranjar desculpas para não o fazer porque somos especiais. Não somos.