O Metro Bus da Boavista nunca deveria ter sido construído

O Metro Bus da Boavista nunca deveria ter sido construído

Uma análise criticamente à decisão de implementar um sistema Bus Rapid Transit (BRT) na Avenida da Boavista, no Porto.

A decisão de construir na avenida da Boavista uma solução Bus Rapid Transit (BRT) é difícil de compreender e justificar, especialmente se tivermos em conta que, no mesmo local onde agora vão circular autocarros em via dedicada, já circularam outrora veículos sobre carris. Carris esses que foram mesmo removidos durante a realização desta obra, encontravam-se escondidos debaixo das camadas de asfalto que foram sendo adicionadas ao longo dos anos.

Os sistemas BRT são muitas vezes propostos como uma solução mais barata que pode fazer sentido em situações onde o volume de passageiros não justifique a implementação de um sistema mais "pesado". Mas será que é mesmo assim tão mais barata, e será que aquela zona do Porto não tem procura suficiente para justificar um veículo sobre carris?

Agora que estamos na reta final da construção desta solução, podemos começar a tirar conclusões quanto ao seu custo e benefício. Com praticamente tudo construído, e apenas estando a aguardar a entrega do material circulante, os custos de construção não deverão agravar ainda mais.

Este sistema custou 76 milhões de euros, mais 10 que os 66 inicialmente previstos.  E apesar dos anunciados 8km de extensão, apenas 2.5km são verdadeiramente corredor dedicado, o resto é feito em via partilhada com todos os outros utilizadores rodoviários. Por outras palavras, apenas 1/3 da linha é de facto um BRT, os outros 2/3 é um simples autocarro normal a partilhar a via, de resto como já existia nesta zona da cidade.

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Tipologia do corredor BRT da Boavista

Uma vez que partilha via com os restantes utilizadores, os veículos têm de estar devidamente homologados para circular na via pública, ou seja, é mesmo apenas um autocarro de 18 metros de comprimento, o máximo legal. O mesmo não acontece com outros sistemas BRT que ultrapassam este comprimento e são duplamente articulados, aumentando a sua capacidade e aproximando-se assim um pouco mais da solução superior que são os veículos sobre carris.

Isto quer então dizer que foram precisos 76 milhões de euros para construir 2.5km de um verdadeiro BRT. Isto dá cerca de 30 milhões de euros por cada km construído, quase o dobro que custou o cada km do Metro do Porto antes das recentes expansões. Todo este dinheiro para substituir asfalto por asfalto de outra cor, e construir umas paragens de autocarro glorificadas.

Este projeto foi totalmente financiado pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que tinha como requisito ser investido em mobilidade sustentável. Ainda assim, tanto a Avenida da Boavista como a Avenida Marechal Gomes da Costa receberam requalificações profundas que beneficiariam o trânsito automóvel, contrariando a estrutura de incentivos da União Europeia. Na Avenida da Boavista foram mesmo requalificadas 4 vias de trânsito automóvel para serem construídas 2 de BRT. 

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Avenida da Boavista depois da requalificação

Na Gomes da Costa substituiu-se asfalto que ainda estava em perfeitas condições por asfalto de outra cor, que na verdade qualquer um pode usar. Uma vez que o piso desta avenida ainda estava em boas condições de conservação, é difícil de entender qual a necessidade da sua substituição, já que nem um corredor dedicado foi implementado, ficou literalmente tudo na mesma.

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A substituição do pavimento na Avenida Marechal Gomes da Costa

Vistas as coisas desta forma, mais parece que o principal objetivo da obra foi na verdade requalificar estas duas grandes avenidas da cidade a custo zero, e o BRT foi apenas a contrapartida chata, necessária e imposta pela União Europeia para aceder aos fundos. No fundo uma demonstração perfeita do chico espertismo português.

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Avenida Marechal Gomes da Costa depois da requalificação

A ajudar à teoria temos o facto do material circulante estar atrasado porque nem fabricante nem o gestor do projeto se lembrou que as portas precisavam de ser à esquerda e não à direita como um autocarro normal. Pelo meio ainda tentaram remediar a situação iniciando o serviço com autocarros normais da STCP no sentido oposto, mas como este sistema foi feito com secções partilhadas para não incomodar o transito automóvel, isso não foi exequível.

Depois disso, quando foi finalmente entregue o primeiro veículo, e só depois de realizados os primeiros testes, é que descobriram que não era possível fazer inversão de marcha no topo da Avenida da Boavista como estava previsto. Sim, 76 milhões de euros e 2 anos depois, ainda existiam este tipo de arestas por limar.

É como se ninguém quisesse saber da parte do projeto responsável por obter todos aqueles milhões. Todos os problemas que apareceram foram relacionados com a parte de mobilidade sustentável, e nenhum foi acerca de um acesso ou entroncamento mal pensado para os automobilistas. Essa parte era de facto importante para os gestores do projeto, então acertaram à primeira.

Economicamente Falando

Não vamos negar que a construção de um BRT é mais barata que um sistema Light Rail, porque é. No entanto um BRT só fica de facto mais barato se tivermos mesmo a certeza de que a procura não será alta nem vai aumentar num futuro próximo. Porque apesar da sua construção ser mais em conta, a sua operação não é, pelo menos em escala, e qualquer poupança na sua construção é rapidamente consumida por custos operacionais bastante mais elevados. Isto não é sequer questionável, basta perguntar à cidade de Toronto que teve de substituir os seus Elétricos por autocarros temporariamente e só isso custou-lhe 1 milhão de dólares a mais por mês.

Olhando para as projeções oficiais, é esperado que este novo serviço de Metro Bus tenha uma procura anual estimada de 4 milhões de passageiros. Com estes números, uma hipotética linha de metro a servir esta zona ficaria a meio de tabela em termos de utilização no universo do Metro do Porto. Não seria nem de perto a linha com menos utilização, e ficaria praticamente ao mesmo nível que as linhas de Matosinhos e Povoa de Varzim, o que torna ainda mais difícil de compreender esta tomada desta decisão. Uma linha de metro com apenas 1.2 milhões de validações por ano é viável, mas uma com 4 milhões não é?

Desta forma a cidade do Porto está a pedir aos passageiros que utilizem os serviços de Comboio Suburbanos e queiram deslocar-se para aquela zona, que façam 2 transbordos, uma vez do Comboio para o Metro e depois do Metro para o BRT. Isto torna a Foz uma "ilha" ainda dentro do Município do Porto, aquele que deveria ser o centro da Área Metropolitana.

Os veículos sobre carris também são mais caros, mas duram muito mais tempo, basta olhar para os elétricos da cidade. E só o facto de um veículo BRT ter menos de 1/4 da capacidade de um veículo duplo da Metro do Porto, deveria ser suficiente para não avançar com esta solução mal amanhada. São quatro vezes mais motoristas que é preciso contratar e pagar salários, 4 vezes mais férias, baixas médicas e imprevistos que é necessário gerir. Isto tudo torna o serviço menos fiável e a sua operação bem mais cara por passageiro, que deveria ser a métrica usada, não qual é a mais rápida e que me custa menos dinheiro agora. Isto é pensamento de curto prazo.

O que o Porto Perde

O Porto perde a oportunidade de ligar toda a zona da Foz, que é hoje um deserto no que toca a transportes públicos em massa, ao resto da Área Metropolitana, reduzindo tempos de viagem e transbordos de forma considerável. Em vez disso, avança com uma meia solução.

É verdade que esta zona da cidade é caracterizada por uma construção menos densa, pelo menos do lado de fora da VCI, mas também é verdade que existem ainda alguns terrenos por urbanizar, e estes poderiam ser utilizados para aumentar a densidade construindo em altura. A solução escolhida não permite pensar em grandes expansões nesse sentido, a menos que o objetivo seja gerar ainda mais viagens de automóvel de e para aquela zona.

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Mapa das linhas subterrâneas atualmente em construção

Visto que estão a decorrer obras de expansão do Metro do Porto literalmente debaixo desta nova linha de Metro Bus, não era de todo descabido fazer a ligação e permitir integrar a zona oeste do município com o resto da cidade. 

Num futuro próximo, a Linha Rosa (G) vai entrar ao serviço, permitindo a quem utiliza a Linha Amarela (D) possa transbordar em São Bento, aliviando a congestionada Estação da Trindade. Mais tarde será a vez da Linha Rubi (H) introduzir um caminho alternativo àqueles que utilizam os serviços Suburbanos, aliviando ainda mais não só a Trindade, mas também todo o eixo Norte/Sul da Linha Amarela.

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Futura exploração das linhas subterrâneas

São estas duas novas linhas, que na minha opinião, é um desperdício não aproveitar para ligar também esta secção oeste da cidade. São escassos metros que separam ambas as linhas Rosa e Rubi do topo da Avenida da Boavista, e não existe local com mais espaço para construir os túneis de injeção do que a gigante rotunda da Boavista. Toda a extensão da linha seria igualmente à superfície para manter o baixo custo de construção, e apenas os últimos metros seriam em túnel para permitir a ligação com as duas linhas subterrâneas em construção.

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Proposta de integração da linha da Boavista no sistema de Metro do Porto

Ao integrar as atuais Linhas de Metro Bus no Metro do Porto não só se mantinha o plano atual de expansão, não interferindo com as linhas Rosa e Rubi, como ainda se aumentava a frequência de circulação nos troços centrais, à semelhança do que já é feito entre Senhora da Hora e Estádio do Dragão, onde as duas vias são partilhadas entre várias linhas, diminuindo os tempos de espera.

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Detalhe da zona central da integração

Esta disposição de linhas permite:

  • Acesso à zona oeste em 1 transbordo em vez de 2 para Suburbanos vindos de norte;
  • Acesso à zona oeste em 1 transbordo em vez de 2 para Suburbanos vindos de sul;
  • Praticamente toda a cidade acessível apenas com 1 transbordo de comboio para metro;
  • Eixo Devesas - Casa da Música reforçado com 2 linhas;
  • Caminho alternativo entre Matosinhos e a Baixa.

Conclusão

Em suma, a implementação do sistema Bus Rapid Transit (BRT) na Avenida da Boavista levanta sérias questões quanto à sua justificação e eficácia. Apesar de ser apresentado como uma solução mais económica, os custos associados à sua operação desfazem qualquer ganho na sua construção, e colocam em dúvida a sua viabilidade a longo prazo.

A sensação que fica é de que este projeto existe apenas como veículo para obtenção de fundos Europeus, e não com o objetivo de implementar melhorias significativas na mobilidade da cidade.  Em vez de aproveitar a oportunidade para construir de facto algo de valor, a preocupação da cidade do Porto é apenas em gastar o dinheiro da forma mais rápida e fácil possível, sem incomodar muito o trânsito automóvel.

A decisão de avançar com o BRT em vez de um sistema de veículos sobre carris, como o metro, parece ignorar as projeções de procura e as necessidades futuras da cidade. Com uma procura anual estimada de 4 milhões de passageiros, uma linha de metro seria não só viável, mas também mais eficiente e sustentável a longo prazo.

E não vale a pena venderem a ideia de que mais tarde é sempre possível fazer o upgrade para Light Rail, que isto é já meio caminho andado, porque não é. A melhoria para Light Rail apenas será ponderada assim que este sistema estiver no seu limite da capacidade, a rebentar pelas costuras e a custar uma fortuna, e quando esse dia chegar vai-se mesmo parar o serviço durante 1 ou 2 anos para instalar carris e catenária? Tenho muitas dúvidas.

O Porto perde assim uma oportunidade única de integrar a zona da Foz no sistema de transportes públicos da Área Metropolitana, reduzindo tempos de viagem e transbordos. Desta forma apenas está a fragmentar cada vez mais a cidade, e fica claro que quem desenha e decide estes projetos não utiliza de facto os transportes, porque senão não estava a pedir a alguém que já fez 40 minutos de comboio para fazer 2 transbordos só para chegar ao trabalho.

Em conclusão, o projeto do BRT na Avenida da Boavista parece ser mais um exemplo de "chico-espertismo" português, onde a prioridade foi na verdade a obtenção de fundos europeus, aproveitando o dinheiro para requalificação urbana a custo zero, em detrimento de uma solução de transporte ponderada, verdadeiramente sustentável e eficiente.