O Desenvolvimento Urbanístico do Barcelos Retail Park foi um desastre

O Desenvolvimento Urbanístico do Barcelos Retail Park foi um desastre

Um exemplo perfeito de como não urbanizar um terreno agrícola e expandir uma cidade.

Por onde começar? São tantos os problemas, tantos os atentados às boas práticas de design urbano modernas, que é difícil escolher o ponto de partida. Este novo espaço comercial com perto de 4 hectares de construção, foi construido e inaugurado muito recentemente, pouco tempo depois da pandemia COVID-19. Numa primeira fase abriram apenas Continente, Worten, Jysk, Leroi Merlin e Burger King. Mas agora que está perto de ser concluída a segunda fase, e vendo que será mais do mesmo, sinto-me confortável para apontar os erros de principiante inaceitáveis cometidos por quem projetou, e pior, aprovou a construção de tal monstruosidade urbanística. Portanto, vamos por pontos:

A Arquitetura

Ou melhor, a falta dela. Existem pavilhões em zonas industriais com arquitetura mais requintada. São autênticas caixas de chapa cinzenta, mais nada. Nenhum detalhe arquitetónico, nenhuma preocupação com o impacto visual. Tal é o desdém pela aparência, que nem parece estarmos num local por onde passa grande parte, senão a maior parte, dos visitantes da cidade de Barcelos. A primeira coisa que vislumbram é um galo desbotado e uns caixotes grandes cinzentos. Parece que o objetivo é replicar esta reconhecida paisagem americana, que é muitas vezes tida como caso de estudo de como não urbanizar território rural:

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Não há espaços verdes ou mobiliário urbano, nem o básico e barato banco de jardim. Existem algumas árvores mas só junto à estrada e não é ainda claro o quão seriamente serão mantidas e quantas delas irão mesmo sobreviver. Ainda nem 4 anos passaram e algumas já parecem completamente abandonadas e a cair.

Para tornar esta questão arquitetónica mais triste ainda do que já é, em meados de 2009, a mesma firma que projetou o Nova Arcada em Braga, conceptualizou um centro comercial para aquele terreno. Isto era o que podia ter sido construido em vez do parque de estacionamento com uns barracões adjacentes:

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Acessibilidades

Este é um local que foi pensado para ser visitado, quase exclusivamente, de carro. E não, isto não é algo positivo, é preciso variedade na mobilidade. Dos três novos acessos criados, um é exclusivo para carros e redundante, outro dificulta a circulação de transportes públicos e não pode ser utilizado por pessoas com mobilidade reduzida, e apenas um parece não ter problemas de maior. Todos os 3 podem ser utilizados fácil e convenientemente de carro, mas apenas 1 não causa inconvenientes a quem quer faze-lo de outra forma. Ainda assim, este único acesso que pode ser usado pelo maior número de utilizadores, não oferece nenhuma via segregada para separar bicicletas do restante tráfego automóvel, como seria de esperar numa obra desenhada e construida nos tempos de hoje, e já com o projeto da ciclovia em execução a escassos metros do local.

O promotor deste projeto oferece a quem chega de automóvel todas as comodidades e mais algumas, até acessos extra redundantes que ligam à mesma Via Rápida da Circular Urbana, e ao mesmo tempo não só ignora as necessidades de quem eventualmente queira deslocar-se num meio de transporte alternativo, como ativamente dificulta essa possibilidade.

Para o acesso do lado este, e sem que existisse qualquer necessidade para tal, foi construida uma nova rua de raiz com uma inclinação na ordem dos 10%. Não é erro nem exagero nenhum, a rua tem mesmo esta inclinação, é incompreensível como foi aprovada a sua construção. 

Em Portugal é proibido por lei, a construção de rampas para cadeiras de rodas com inclinações superiores a 6%, porque acima desta inclinação torna-se extremamente difícil, para não dizer impossível, de qualquer utilizador numa cadeira de rodas vencer a gravidade. Ou seja, uma rampa de 7% é construção ilegal, mas uma rua nova com 10% é legal? Como é que isto foi aprovado? Será que um novo edifício construido nesta rua será obrigado a construir uma rampa de no máximo 6% para ter o projeto aprovado? Se sim para quê? As pessoas com mobilidade reduzida vão fazer tele transporte para o inicio da rampa? É que para chegar à rampa antes está um desnível de 10%, que com certeza não vão conseguir subir. É só ridículo e não faz sentido nenhum, a Câmara Municipal vai chumbar um projeto submetido se tiver uma rampa para cadeira de rodas de 7%, mas uma rua inteira de 10% já é permitido.

Mesmo que não sejam construidas habitações ou comercio nessa rua íngreme, é inaceitável a inclinação exagerada, primeiro porque é completamente desnecessário, o desnível foi criado propositadamente retirando solo. Segundo porque torna o arruamento impossível de ser usado como ponto de passagem para uma parte da população, e não só apenas pessoas em cadeiras de rodas, mas outras com os mais variados problemas ou dificuldades de mobilidade. Inúmeras pessoas deixam de poder usar esta rua, ou na melhor das hipóteses, mesmo sendo possível é extremamente desagradável utilizar, para aceder à zona comercial a não ser dentro de um carro. Alguém que tenha problemas de mobilidade, esteja em frente ao McDonals no topo da colina e queira fazer os 150 metros para ir ao continente, terá de fazer 740 metros por uma rua sem passeios, ou se preferir mesmo usar passeios e passadeiras, é mais de 1km via campo 5 de Outubro.

Tudo isto é by design, e completamente desnecessário. Antes existia um terreno agrícola com uma inclinação muito mais gentil, de resto como é visível nas imagens Google Street View antigas, e o que a construtora fez foi escavar, e tornar esta rua propositadamente perigosa e inacessível. Tudo isto para maximizar o numero de metros quadrados de terreno plano para vender ou arrendar, e assim maximizar lucros, às custas dos habitantes e do crescimento sustentável da cidade.

Como a métrica principal foi a maximização do terreno para construção, a curva na base da rampa também foi feita num ângulo de 90º, sem consideração alguma para os autocarros ou outros veículos pesados, que para conseguirem circular têm de ocupar a via de trânsito oposta, isto em cima da inclinação absurda que já dificultava a sua circulação.

Como se tudo isto não bastasse, no topo da colina a conexão da rua existente com a nova foi feita de forma criminosa. Os passeios têm degraus no interface entre as duas ruas, e um deles até tem um PowerTransformer (PT) mesmo no meio a bloquear uns bons 90% do espaço. Isto não existia antes desta zona comercial ser construida, e não é claro se é aquele PT que fornece energia para o o novo Retail Park. Mas se for, não tenho palavras para descrever a pessoa que prefere ocupar o espaço de um peão num passeio que já é uma pequena fração do espaço da rua, para colocar algo que podia ter sido colocado num canto qualquer dos mais de 5 hectares de terreno rural disponível.

Uso do Espaço

A fotografia aérea de todo o complexo revela bem a prioridade: o Carro. É um mar cinzento onde só se vislumbra asfalto e chapa. O parque de estacionamento é sobre-dimensionado, nos cerca de 3 anos que está em funcionamento, este nunca ficou completamente cheio, nem perto disso. Uma das lojas até começou a usar secções inteiras para servir de exposição de produtos.

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Mesmo que por alguma razão se ache que o estacionamento não é demais, qual é o racional de colocar também estacionamento com acesso direto para a rua com um parque de 300 lugares atrás? E estacionamento perpendicular, dos dois lados! Imaginando que os 300 lugares não chegavam, os 30 ou 40 extra que estão virados para a rua nunca deveriam lá estar, o seu acesso devia ser também através do parque de estacionamento interno e nunca a partir da via pública.

Desta forma apenas se criam mais pontos de conflito, mais sítios onde podem ocorrer colisões. Aumenta-se a complexidade e embaraço a quem circula na rua. Quem estiver só de passagem vai ter de esperar por alguém à procura de lugar e a fazer a manobra. E quem está a estacionar vai estar pressionado por outros condutores para realizar a manobra o mais rápido possível, aumentando a probabilidade de cometer erros. É o pior para os dois casos de uso, não deixa ninguém satisfeito. 

Outro problema que o estacionamento de rua causa é a redução de visibilidade e diminuição do tempo disponível para reagir a algo inesperado, aumentando a probabilidade de acidentes em interseções e atropelamentos em passadeiras. E que surpresa, não tendo acesso a estatísticas oficiais, pessoalmente já testemunhei dois acidentes na saída de sentido único do parque que tem carros estacionados perpendicularmente a importunar a visibilidade, mas na outra saída mais larga e sem estacionamento ainda não vi nenhum.

É preciso separar os tipos de tráfego, são dois casos de uso completamente diferentes, misturar ambos é ineficiente e inseguro, não deve ser feito a não ser que seja impossível. Aqui era possível, este terreno era literalmente uma tela em branco. Fazer isto de propósito sem ser obrigado, quando não se tem nenhuma restrição de espaço ou morfologia de terreno, é pura incompetência, é sinal de quem pensou nisto não sabe o que está a fazer e não devia ser responsável por decidir como as nossas cidades devem ser construidas.

No meio deste estacionamento todo, ninguém foi capaz de reservar o espaço que apenas 1 carro ocuparia, para colocar um abrigo ou banco que seja, para a paragem de autocarro ali acrescentada posteriormente. Para se ter uma noção das prioridades, esta paragem de autocarro nem sequer um sinal vertical teve direito, foi pintado a azul no chão, num canto do passeio, uma frase que se pode ler "Paragem TUBA". Depois foi la adicionado um cartão ao sinal vertical de STOP já existente. 

Como é que se pode querer que as pessoas andem mais de transportes públicos e outros meios de mobilidade leve, quando permitimos esta discrepância de tratamento? Este é um dos maiores e mais recentes desenvolvimentos na cidade, que mais uma vez passa a mensagem de que é suposto usar o carro, não é suposto andar a pé ou de bicicleta, e autocarros podem vir mas nós esquecemos disso no projeto, por isso fiquem aí nesse canto e não chateiem muito. Ao mesmo tempo podemos observar executivo atrás de executivo camarário a defender o uso de transportes públicos e bicicleta, mas depois permitem que isto aconteça. É mais um caso de "olhem para o que eu digo, não olhem para o que eu faço".

Impermeabilização dos Solos

Um terreno rural, com mais ou menos vegetação, absorve sempre alguma água quando chove. Mesmo a que não consegue absorver, controla de certa forma o fluxo excedente. Um dos desafios com qualquer urbanização, grande ou pequena, é a impermeabilização destes solos. Este é um problema já mais que conhecido, várias cidades padecem deste mal, e muitas delas já tomaram ou estão em vias de tomar medidas para mitigar os efeitos negativos.

Quando se impermeabiliza uma grande área como a do Retail Park de Barcelos, e se reencaminha toda essa água para um rio ou riacho, está-se a aumentar a probabilidade de uma cheia ocorrer, e ocorrer com maior gravidade, porque se sobrecarrega com maior volume, um canal que nunca recebeu tanta água. Se antes alguma da água era absorvida e depois o que sobrava era libertada ao longo de algumas horas ou dias, agora não só nenhuma água infiltra o solo, como vai tudo, e vai no imediato, e não durante as próximas 2 horas.

De forma muito sucinta é este o problema da impermeabilização dos solos. E parece que no caso do Retail Park toda esta água vai ser encaminhada para o Rio de Vila, através de um novo tubo que atravessa a avenida de S. José perto da Rotunda do Galo. O remendo ainda é visível à data de publicação deste artigo. 

Com isto esta zona comercial garante que no seu perímetro não deverá ocorrer cheias, a drenagem foi bem feita e vai funcionar na perfeição. A mesma sorte não vai ter que está mais abaixo no caminho da água, que agora vai receber bem mais caudal que antes. Foi adicionado o tubo para levar a água para o riacho do outro lado da avenida, mas não foram feitas nenhumas alterações no riacho para este ser capaz de receber o caudal extra que certamente agora passará a receber.

O que os arquitetos deste retail park deveriam ter feito era desenhar mais espaços verdes, mais zonas com capacidade de absorver e armazenar água temporariamente. Outra medida inteligente que poderiam ter adotado era construir uma piscina de retenção entre a avenida de S. José que é ligeiramente elevada, e as Traseiras do Burger king. Aproveitar a depressão no terreno e usar a estrada como uma mini barragem para controlar  o fluxo de água a ser descarregado no riacho e assim reduzir o risco de cheias. Mas isso seria gastar dinheiro para beneficiar os outros e não os donos do projeto, por isso não foi feito.

Por isso, se nos próximos anos começarem a haver mais cheias no campus do IPCA ou na zona industrial do Aldão, não esquecer que muito provavelmente, para não dizer com certeza, este novo Retail Park contribuiu para que fossem uma realidade, e  uma realidade bem pior do que poderia ter sido.

Resumindo

  • Arquitetura inexistente e impacto visual negativo;
  • Zero acessibilidades para bicicletas ou outras formas de mobilidade leve;
  • Acessos a pessoas com mobilidade reduzida muito dificultada;
  • Estrada com inclinação de 10% criada propositadamente quando é ilegal construir rampas com inclinação superior a 6%;
  • Traçado da rua incompatível com transportes públicos ou qualquer outro veículo pesado;
  • Mar de asfalto, parque de estacionamento sobre-dimensionado. Mais de 300 lugares de estacionamento e nem 1 lugar puderam dispensar para fazer uma paragem de autocarro digna;
  • Rua principal de passagem poluída com estacionamento de rua e fraca visibilidade.
  • Zero espaços verdes e impermeabilização elevada a todo um outro nível;

Portanto, mais um espaço novo e "moderno" construido que explicitamente comunica a todos os seus visitantes que é suposto se deslocarem ao local de carro. Todas as conveniências e mais algumas para quem chega de automóvel privado, todos os outros nem sequer entram para a equação. Há uns que são completamente ignorados, outros que não o sendo, são adicionados como pensamento posterior, só para dizer que tem também essa possibilidade, mas na realidade é terrível solução para quem realmente usa. 

Viola praticamente todos os bons princípios de design urbano moderno, ao mesmo tempo que tenta imitar a cultura carro-cêntrica, de drive thru norte americana, onde tudo se pode fazer a partir de dentro de um carro, sob pena de ter de andar a pé 2 minutos que sejam. Uma cultura e uma forma de construir que está provada que é economicamente insustentável para as cidades a longo prazo, que causa isolamento social, dependência do automóvel, promove sedentarismo e que tornam as nossas ruas menos seguras para todos fora de um carro.